Logo após concluir a faculdade de Engenharia Elétrica, no final de 2012, sentia uma inquietação. Não bastava buscar apenas um trabalho técnico; eu queria fazer algo com significado, algo que realmente causasse impacto. Estava dando início à minha carreira, e ela precisava começar de forma memorável. Foi com esse espírito que, em janeiro de 2013, embarquei para a Guatemala para trabalhar em um projeto desafiador e transformador com a então chamada QUETSOL.
A missão – que, à primeira vista, me parecia um pouco confusa – era levar energia elétrica a comunidades indígenas em áreas rurais onde a luz nunca havia chegado. Uma pausa para explicar minha confusão, que tem a ver com o meu background. Sou filho de um técnico em Eletrotécnica e sempre admirei o trabalho do meu pai em subestações de energia e torres de transmissão. Durante minha formação, também tive a oportunidade de estagiar na área, conhecendo de perto o sistema de fornecimento de energia elétrica no Rio Grande do Sul, especialmente na região do Planalto Médio. Esse sistema me parecia estruturado e eficiente, e até então, representava a minha principal referência. Lá, a luz chegava a todos.
Ir à Guatemala para trabalhar levando energia elétrica a pessoas em áreas remotas foi uma experiência que me marcou profundamente – não apenas por me livrar da falácia de pensar que luz era algo garantido para todos, mas pelas lições técnicas e pelas conexões humanas, pelos desafios culturais e pela reflexão crítica sobre o papel da tecnologia no desenvolvimento social.
Mais de 1,5 bilhão de pessoas no mundo ainda vivem sem acesso à eletricidade. Isso não é apenas um dado técnico – é uma realidade que impacta profundamente a educação, a saúde e as oportunidades econômicas dessas comunidades. Na Guatemala, as áreas rurais habitadas por povos indígenas – falantes dos 21 idiomas maias, entre eles o Que’chi, K’iche’, Mopan e o Cakchiquel – enfrentam barreiras que vão além da falta de infraestrutura. Estar fora da rede elétrica significa noites no escuro, educação limitada e até doenças respiratórias causadas pelo uso de querosene para iluminação.
A rede elétrica convencional dificilmente alcançaria essas áreas, e a solução que vinha sendo trabalhada pela Quetsol era criativa e sustentável, porém difícil de ser viabilizada financeiramente, e foi aí que a QUETSOL se destacou com a proposta de sistemas fotovoltaicos e o modelo pay-as-you-go. Meu papel era justamente dar vida a este projeto.
Nosso objetivo era projetar e implementar sistemas fotovoltaicos que fossem práticos e econômicos para as comunidades. A empresa já fornecia equipamentos e tinha diversos clientes nas comunidades rurais. Em cima da plataforma original de um Kit de energia solar, desenvolvemos um circuito adicional que usava um microprocessador, tela e teclado e contava o tempo de uso para gerenciar o acesso à energia. A tecnologia se baseava na venda de chaves numéricas que podiam ser inseridas por meio de um teclado e distribuídas por agentes locais – donos de mercearias, pequenos comerciantes ou moradores com um celular. Em resumo: Luz pré-paga. A pessoa digitava o código e liberava o equipamento por um tempo.
Para quem entende um pouco de eletrônica básica, isso pode parecer um simples circuito de entrada simples na Figura 3, existem algumas maneiras de implementar isso, mas em suma a tensão da bateria é regulada pelo 7805, e alguns componentes auxiliam na estabilidade do componente, no entanto aquele diodo 1N4001 (D1), um componente de poucos centavos, foi uma das primeiras pontes entre teoria e prática que tive em minha vida profissional. A história dele é boa e eu conto daqui a pouquinho!
Essa fonte da Figura 3 era utilizada para alimentar um circuito com um microprocessador, relé e.. bom, aqui fica meio técnico demais, por isso vou colocar logo a imagem da placa completa do módulo Pay-as-you-go na Figura 4. Neste módulo eram acoplados um teclado numérico e uma tela LCD, para interface com o usuário.
Respeitando a propriedade intelectual da empresa, evitarei entrar em muitos detalhes técnicos. No entanto, encontrei uma descrição que redigi para a documentação deste módulo em novembro de 2013, e acredito que ela resume fielmente o trabalho que realizamos até o fim daquele ano:
“The PAYGV10R02 is a complementary circuit designed for Quetsol’s 10W kit, intended for use with an LCD screen and numeric keypad.
This circuit latches the output, enabling users to activate the 10W kit by entering a valid code.The PAYGV10R02 supports a 12-digit code protocol and features a programmable mask.
The entered mask must match one of the masks listed in Quetsol’s classified files to validate the generated codes.
Each code is unique to its corresponding mask and is stored in EEPROM memory, along with the remaining operational time, ensuring data retention in case of an unexpected system shutdown.”
Saindo um pouco do lado técnico, gostaria de deixar claro ao caro leitor que chegou até aqui, que o objetivo principal não era apenas desenvolver um produto que habilita o modelo de negócio pré-pago, mas sim testar o modelo de negócio!
Com as idas as comunidades e maturação do produto e do modelo, fomos evoluindo muito. Essa abordagem descentralizada fez toda a diferença. Os próprios membros da comunidade passaram a gerenciar o fornecimento das chaves, através de uma aplicação web que desenvolvemos. Criava-se aí, além de tudo, um ciclo de empoderamento local em 3 pilares: O impacto social, o desenvolvimento econômico e o acesso a tecnologia.
A eletrificação trouxe mudanças imediatas e palpáveis. Os habitantes destas comunidades, apesar relativamente isolados, possuem aparelhos celulares para se comunicarem, além de alguns eletrodomésticos simples. A luz também tem um grande impacto na qualidade de vida e no desenvolvimento destas famílias. Lembro de uma história em particular: a de um menino que nos guiou através de uma comunidade em uma das nossas visitas, e que na ocasião se comunicava apenas com o idioma da comunidade, arranhando apenas palavras básicas em espanhol. Após alguns meses depois de termos instalado o sistema fotovoltaico na casa de seus pais, fomos novamente na comunidade e nos reencontramos. Ele veio sorridente, e de forma muito fluída nos recebeu e nos conduziu contanto (em espanhol!) sobre como conseguiu melhorar significativamente na escola. Antes, ele estudava sob a luz fraca e incerta de uma lamparina de querosene. Com a chegada da luz elétrica, ele pôde se dedicar por mais tempo aos estudos.
Essa era apenas uma entre muitas histórias. Era nítido que a eletrificação trouxe não apenas iluminação, mas dignidade, educação e até saúde para essas comunidades.
O trabalho, porém, não foi isento de desafios. As barreiras linguísticas eram constantes – os idiomas locais exigiam uma ponte cultural que nem sempre era fácil construir. Um exemplo foi a sorte que tivemos com um técnico que havia sido contratado, que além de muito competente, era falante nativo de Que’chi, o que por diversas vezes nos garantiu acesso às comunidades e as casas das pessoas, e até mesmo nos ajudou a achar o caminho de casa em meio a trilhas e florestas.
Cabe ressaltar que não fomos só nós humanos que fomos testados pela diferença cultural. Houve momentos em que os locais testaram os limites da tecnologia. Uma dessas situações foi quando começamos a receber relatos de problemas técnicos em algumas comunidades. Após investigações, descobrimos que alguns moradores haviam “hackeado” alguns dos equipamentos, queimando placas de circuito propositalmente ao inverter os polos da bateria – lembram do Diodo D1? Pois é, em algumas versões do equipamento ele não estava presente, e isso causava a queima do microcontrolador. Isso naturalmente acionava relé (do tipo “normalmente fechado”), permitindo o acesso à luz de graça. Alguns poucos equipamentos que usavam um relé oposto (normalmente aberto), ficavam sem funcionar, e isso “dedurou” os hackers.
Longe de ser uma afronta, isso mostrou como as pessoas são criativas e adaptativas. Foi um lembrete valioso: soluções tecnológicas precisam ser projetadas não apenas para o uso ideal, mas para os contextos reais, prevendo as mais variadas situações de experiência de usuário.
Enquanto percorria regiões como Atitlán, Cobán/Alta Verapaz e Zacapa, não pude deixar de lembrar do livro Week-end en Guatemala, de Miguel Ángel Asturias. Ele narra, com profundidade crítica, o impacto da exploração estrangeira nas comunidades indígenas guatemaltecas. Embora hoje o contexto seja outro, é impossível ignorar a continuidade de algumas dinâmicas.
Vi muitos voluntários estrangeiros – membros do Peace Corps e intercambistas europeus – atuando nessas comunidades. Eles faziam coisas boas, sim, mas para muitos, aquilo era uma espécie de experiência de vida misturado com turismo, algo quase penitencial em meio há um país exótico com tantas belezas naturais. Eu, por outro lado, sabia que meu objetivo era diferente: não estava ali apenas para viver algo transformador, mas para buscar resultados concretos.
Meu papel na QUETSOL foi uma peça em um quebra-cabeça muito maior. Embora não possa atribuir a mim os resultados posteriores, sinto orgulho em ter contribuído para o desenvolvimento do modelo pay-as-you-go, que ajudou a empresa a crescer.
Mais tarde, a QUETSOL evoluiu e mudou de nome para Kingo, aprofundando seu impacto e alcançando novas comunidades. Meu trabalho foi apenas um dos muitos passos que levaram a isso, mas ver o que construímos juntos se transformar em algo tão significativo é uma satisfação imensa.
Essa experiência me ensinou duas lições valiosas. Primeiro, que a engenharia precisa sempre considerar as necessidades das pessoas e o contexto social em que atua. Segundo, que devemos projetar com resiliência, sabendo que a criatividade humana testará os limites de qualquer solução.
Mais do que isso, me fez refletir sobre o papel do engenheiro no mundo. Não somos apenas solucionadores de problemas técnicos – somos agentes de transformação social. Nosso trabalho deve sempre buscar um propósito, respeitando culturas e aprendendo com o passado, para criar um futuro mais justo e sustentável.
Deixo para o fim do artigo, um trecho do meu diário de 14 de Março de 2013, que fala sobre uma das atividades realizadas em uma das viagens que fiz. Em Inglês, pois era o idioma utilizado para relatórios na empresa:
“In San Vicente, we walked to each of the houses to find the kits. It was a simple task since Gustavo knew all the locations and speaks Q’uechi’. The locations were not hard to reach once the weather conditions were favorable.
For equipment, we needed a laptop, some electronic components, and general tools to open the kits. The steps described above could not be completely executed due to the time it took to go from one house to another. To review a large number of kits, we decided to skip the update in some of them.
In Tonirun, some people were waiting for us in the same place. It was raining, and the walk to the location took at least 45 minutes. We reviewed nine kits there, followed by four more in another house.
The update was cancelled after extensive tests on the first kit. The new version of the code had issues with the activation of the relay, and we could not resolve them on-site. For now, all the kits in Tonirun are operating with the old code.”